terça-feira, 23 de setembro de 2014

10 anos de Lost

Do Omelete
Podia parecer apenas uma ironia visual de pilotos que querem se fazer de espertinhos, mas duas premissas básicas que sustentaram a dramaturgia de Lost  por todos os seus seis anos, apareceram na forma de cenas intermediárias, sem que nesse primeiro episódio, tivéssemos a menor ideia de que o futuro do show seria determinado por elas. É importante começar esse texto dizendo que não, nunca acreditaremos que tudo – absolutamente tudo – estava planejado desde o início, mas a beleza de se aplicar uma ideia num contexto estabelecido, nunca será menos admirável.
No dia 22 de Setembro de 2004, o Oceanic 815 caiu. Depois de todo o caos inicial, o músico Charlie (Dominic Monaghan) reforça as letras gravadas nos esparadrapos que lhe protegem os dedos. F. A. T. E. Destino. Daqueles que estabelecem tudo, daqueles dos quais não há nenhuma chance de escapatória, tais quais aqueles que moviam os personagens das tragédias gregas, que não tinham nenhuma escolha, que eram movidos pelas profecias anunciadas antes mesmo que eles nascessem, e tinham suas vidas movidas pela execução disso. Claro que a essa altura não sabíamos de nada, nem eles. Mas era o destino, a sina, os propulsores daquela reunião de tipos amaldiçoados.
Ninguém tinha muito do que se orgulhar na sua vida fora da ilha e essa era outra liga entre os personagens. Lost foi construída em torno do conceito de anti-heroi que tomou a televisão dessa Terceira Era de Ouro, inaugurada por Tony Soprano, que mostrou ao mundo que éramos capazes de amar gente que podia ser tão destrutiva. Podíamos até ser conduzidos por um médico determinado a salvar, mas mesmo ele, era tomado de egoísmo e ira, sempre disposto a colocar sua razão acima de qualquer coisa, inclusive de vidas que ele deveria querer salvar. A palavra de ordem dos protagonistas de Lost era “EU”. E eles tinham sido levados até ali para priorizar o outro. Cada um na sua jornada pessoal de compreensão sobre si mesmo, para que a partir disso pudesse haver a possibilidade de entendimento do que é altruísmo. No final das contas eles haviam sido levados até ali porque não havia um mundo aprazível para onde pudessem voltar, mas permanecer na ilha e preservá-la era uma questão de chegar a essa consciência. Era uma questão de jogar fora esse “EU”.
Jack (Matthew Fox): Eu sofro porque sou tão bom a ponto de me sacrificar pelos outros. Eu sou mais esperto, eu sou a liderança, eu sou o responsável, eu preciso ser reconhecido por isso.
Kate (Evangeline Lilly): Eu mato pelos que amo e eu não quero pagar por isso.
Sawyer (Josh Holloway): Eu seduzo, eu engano, eu roubo, eu sou assim porque eu sofri quando criança.
Sun e Jin (Yunjin Kim e Daniel Dae Kim): Nós mentimos.
Hurley (Jorge Garcia): Eu sou um incompreendido... Eu só quero amor, não quero dinheiro, mas não vou abrir mão dele, tampouco.
Sayid (Naveen Andrews): Eu torturo, mato e mutilo. Mas, eu também amo.
Locke (Terry O’Quinn): Não me diga o que EU não posso fazer. Mesmo que eu não possa.
Não se tratava apenas de seguir uma fórmula que ficou estabelecida desde The Sopranos: esses protagonistas falhos, sendo conduzidos com personalidades tridimensionadas, para que seus defeitos e qualidades se fundissem num reflexo até brutal de nós mesmos. No caso de Lost essas similaridades tinham um grande propósito. Se um deles precisava ficar na ilha, não poderia haver um mundo possível do outro lado do oceano.
O Mito
Também logo no início da série, Locke fala com Walt sobre um jogo e mostra a ele duas pedras, uma branca e a outra preta. Dois lados: um claro e o outro escuro. A base maior para tudo que nos permeia desde o início das civilizações. O claro e o escuro que aparecerão em vários outros momentos, tanto de formas práticas quanto metafóricas, como pombas num sonho de Charlie ou como os olhos de Locke num sonho de Claire. Mas já está estabelecido aqui que John é o personagem que está diretamente ligado a essa base narrativa. Sendo ele, também, o primeiro a ver o Monstro de Fumaça, sem que fosse atacado por ele. Locke era o único que sempre quis acreditar e se tornara por isso, o fantoche mais acessível.
Chocado, Jack, logo no episódio piloto, vê o pai que deveria estar morto, espreitando nos arbustos. Esse momento, junto com o monstro andando na selva, foi o que mais ampliou o universo do show para fronteiras mitológicas. No fim de tudo, estavam interligados por uma das maiores ousadias da dramaturgia de Lost. Aquela que dividiu esse destino dos personagens em dois sentidos específicos, liderados pelos dois representantes do claro e do escuro.
Jacob, o lado claro, reuniu na ilha todo aquele grupo de pessoas que nada tinha a perder, os fez conhecer e descobrir a ilha lentamente, porque simplesmente dizer a eles o que eles precisavam fazer não os  convenceria a ficar. E o lado claro, vejam só, dá ao outro a liberdade de dizer não. Já o Homem de Preto, o lado escuro, não acredita em renúncia pessoal e sim em objetivo definido. Ele reforça o “eu” e norteia sua existência para conseguir o que quer. Com sua forma alterada pelo contato com a energia eletromagnética da ilha, ele fica preso nela e passa a desejar ardentemente a vingança e a liberdade. Mas, não pode fazê-lo sozinho e assim que o avião cai, começa seus planos de manipulação através das relações humanas.
Na maioria das vezes, o que a ilha queria era o que o Monstro queria. Visões de mortos com recomendações específicas e julgamentos de sobreviventes eram só alguns exemplos. Na forma do pai de Jack, o Monstro não conseguiria o acesso necessário, mas conseguiria, talvez, manipular alguém muito ávido por sentir-se especial. Então Locke vira a ferramenta perfeita. Ele precisa primeiro ser convencido de que tem um papel na ilha, depois ser convencido de que precisa fazer qualquer coisa para mantê-lo e por fim, virar a capa perfeita, cheia de ligações emocionais com todos os outros sobreviventes. O Homem de Preto era o jogador mais agressivo, que saía para o tabuleiro movimentando as peças, o que acabou resultando no sucesso de seus planos de execução.
A Ciência
Não se pode julgar um espectador que não consegue absorver a proposta de Lost... Mas, não se pode dizer também que não havia um pensamento que tivesse amarrado toda essa junção ousada de ciência e mitologia que constituíram a atmosfera da série. Ao inserir, no ano 2, o plot da escotilha, o roteiro tinha descoberto uma base narrativa que foi a condução mais viável para tudo que pudesse ser encarado como inexplicável, partindo sempre do princípio dramatúrgico básico de que a ficção permite o ato da fé naquilo que seja – à primeira vista – imponderável.
Na segunda temporada ouvimos sobre energia eletromagnética... Ela estava ali, presente na escotilha, atraindo a chave pendurada no cordão de Jack, por exemplo. Nesse primeiro momento, achamos que a história toda do botão que precisa ser apertado a cada 108 minutos é uma grande loucura. Mas, vamos entender mais tarde que toda a ilha está situada acima de um imenso bolsão de energia eletromagnética, energia essa que é, cientificamente falando, imprevisível se vier em condições maciças.
Toda a matéria existente no universo é constituída por átomos (…) A instabilidade dos átomos está associada a um excesso de energia acumulada, que tende a ser liberada sob a forma de radiações (…) Células vivas expostas a essa radiação, por exemplo, podem ser destruídas ou alteradas” (Fonte: Biodieselbr.com)
No trecho acima, está, por exemplo, um possível embasamento de muito do que vimos no decorrer daqueles seis anos. O corpo humano também irradia energia eletromagnética e pode ser alterado ou transformado se entrar em contato com formas brutas dessa liberação energética. A ilha, carregada em altos níveis por essa energia, acabava alterando o funcionamento do corpo, curando doenças, impedindo gestações, interferindo no curso normal da ação do tempo e da natureza.
No famigerado episódio Across the Sea, do sexto ano, o que vimos foi um tempo de incompreensão acerca desses aspectos científicos da “tal luz”. A ilha, como um todo, era como um isolante dessa energia, que escapava, eventualmente, por frestas geradas pela ação do tempo ou do homem. A escotilha e o botão, a roda congelada... por vários momentos nós estivemos diante de escapes dessa energia ou de descarregamentos dela. Da explosão do segundo até os saltos no tempo do quinto, era sempre a mesma luz que era gerada do centro da ilha para fora, e esse era sempre um sinal de que a liberação dessa força é que terminava sendo responsável pelo desequilíbrio das circunstâncias e do tempo. Eletromagnetismo e radiação são velhos conhecidos nossos em qualquer trama de ficção científica que lide com questões desse tipo.
Mas então imaginemos que civilizações muito antigas tenham estado em contato com a ilha. Os egípcios parecem ter estado por lá e é claro que assim como nos estudos de Erich Von Daniken, manifestações científicas que não podiam ser traduzidas ou compreendidas, eram confundidas com mito, com divindade. Assim, estátuas de adoração, templos de contemplação, escrituras e profecias eram parte de um tempo da ilha onde não havia uma Iniciativa Dharma, a primeira a correlacionar os eventos inexplicáveis da ilha a sua natureza eletromagnética.
A Fé
Por mais que em qualquer boa trama de ficção haja muito embasamento científico, não se pode esquecer jamais que estamos diante de uma história inventada e que o prazer de fingir que acreditamos nela está em conceder e permitir. Há aspectos de Lost que não podem ser explicados com pesquisa prática, mas não se pode maldizê-los por isso. Alguma coisa no meio do percurso é regra estabelecida pela vontade ou é manifestação emocional bruta, sem medo de não ser verdade.
Mesmo que tenha sido a energia eletromagnética a transformar o Homem de Preto no Monstro de Fumaça (tanto que ao descarregar ilha, ele volta ao normal), não temos uma explicação prática para a imortalidade e os poderes de Jacob. Não sabemos como o cargo de guardião da ilha passa de uma pessoa pra outra. Mas, ao mesmo tempo, numa trama tão tomada de embasamento teórico, seria mesmo tão pecaminoso assim que houvesse um aspecto fantástico da história que tivesse surgido como surgem tantas boas histórias da humanidade? Vontade, apenas.
Mulder e Scully tinham milhões de referências científicas para embasar seus casos, mas nada podiam fazer pra explicar a vida após a morte, que era tão presente em Arquivo X. O universo alternativo de Fringe foi descoberto e explorado de muitas formas cientificamente prováveis, mas a consciência de Bell ir parar no cérebro de Olívia mesmo com ele morto é algo que se aceita mais por vontade do que por teoria. Bons roteiristas sabem conduzir esses experimentos narrativos de forma a torná-los viáveis e cheios da atmosfera do show, mas o papel de Jacob na ilha ou o fato do Monstro tomar a forma de quem já estava morto, são aspectos inverossímeis naturais ao exercício da fé cênica. Se o entorno estiver sendo bem cuidado, podemos nos permitir acreditar em um ou outro detalhe que tivesse precisado existir por vontade, muito menos que por verdade.
É aí que se situa, também, a decisão de sobrenaturalizar os flashes do sexto ano. Se a série começou falando de destino, fez sentido para os roteiristas que essa noção de predestinação os perseguisse até mesmo no pós-vida. Todos nós conhecemos um pouco dessa sensação de “evento compartilhado”. Toda vez que encontramos com uma turma de escola, de faculdade, de viagem, de infância, de trabalho, que tenha sido transformadora na nossa  vida, que tenha sido uma parte descolada da nossa rotina, sempre temos a sensação de que naquele período, com aquelas pessoas, aquele tempo, nos define em alguma instância. Nesses reencontros nós acabamos entendendo que vivemos algo especial, compartilhado com aquele grupo de pessoas que será o único que compreenderá aquela sensação. Participantes de uma mesma edição de um reality show devem sentir isso o tempo todo. E foi aí, nessa direção, que caminharam os eventos da última temporada de Lost. Claro que todo mundo tem o direito de não aceitar essa explicação lúdica, mas aí não reside um julgamento de valor e sim uma diferença de impactos. O que não afeta uns, afeta outros, e o mundo continua girando.
Ao final do último episódio, a mitologia da série estava bastante esclarecida. Existe um eco indelicado a respeito de Lost, que confunde rejeição a resposta com falta de resposta. Que confunde não querer um sentido emocional e lírico com não poder haver lirismo. Existem algumas das maiores histórias de ficção científica da humanidade que dependem apenas e exclusivamente da nossa fé. Talvez o problema tenha partido da maior qualidade de Lost:: chegar perto, muito perto, de se fazer real. Assim, por amor mesmo. A questão é que havia uma fumaça preta rondando a ilha desde o primeiro ano e esse já era um indicativo claro de que no meio das buscas por referência e ciência, haveria a fé e o mito, que dependem exclusivamente da nossa permissão para existir. O que acontece é que alguns de nós nos deleitamos, nos refestelamos, fomos ao apogeu da permissividade, e em dado momento, depois do êxtase, quando a série pediu por nossa aprovação, nós dissemos “NÃO!”.
A toda inteligência, esperteza, sagacidade e catarse que Lost me proporcionou, eu agradeci dizendo sim... Eu podia acreditar nela, principalmente porque por seis anos, ela sempre acreditou em mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário